Corvo-Cisne

Em cima os vizinhos cantam canções de futebol, parando por vezes numa hesitação de sofrimento ora pela sua equipa, ora pela bola elevada a objecto personificado. Ao lado, as velhas e surdas irmãs aumentam o som da telenovela e sofrem, entoando ohs periódicos, pela sonsa principal do enredo, um menina boa e enganada.
Novamente os ogres no andar de cima. Os batuques no chão ou em panelas. Que feias lhe parecem as cançonetas da bola. E que toscas, as pessoazinhas e as suas televisões.

E uma raiva a desaguar dentro dela, o cabelo a cair-lhe em mechas no chão. Depois um sussurro torpe como pedido. Começou a chorar mas ele continou em cima dela e continuou e continuou.
Ela fechou os olhos, susteve a respiração, deixou-se ficar e pensou noutras coisas. Como seria bom poder beliscar com força até marcar, os pescoços dos comentadores políticos, treinadores de futebol e apresentadores de concursos. Ai, se pusesse as unhas em cima do Crespo, do Jesús e da Bárbara Guimarães. Isso sim é que era uma marca na carne que valia a pena.

Levanta-se e fecha-se na casa-de-banho. Limpa-se. Depois penteia-se. Sabe que o reflexo no espelho não lhe pertence. O que acabou de acontecer. Não pode ter sido a ela que o que acabou de acontecer, aconteceu.
O espelho mostra-lhe a imagem de uma louca que pinta os lábios de vermelho para ir dormir. Uma pergunta do outro lado da porta. Mente ao estranho com quem mora ‘estou só a lavar os dentes, não é nada’.

Leva a mão trémula ao peito, para mandar o coração bater mais devagar, e depois à gaveta desarrumada onde encontra uma aliança de um antigo namorado de liceu. Sem pensar enfia-a no dedo. Sorri de lábios muito vermelhos e mal pintados. Acha-se feia. Mas de súbito, apaziguada, deixa de querer partir televisões com bolas de futebol e sonsas perdidas lá dentro. A beleza nunca salvou ninguém de nada, nem de ninguém. Muito pelo contrário, a beleza só atrai caçadores de troféus, canibais e exibicionistas.

O aborrecimento. A dor. O tédio. O abandono. Um mundo feito de marinheiros  jogadores de poker e cobardes que não reclamam a pertença do seu troféu, acabada a caça.

Só precisava que lhe tirassem aquele objecto redondo e brilhante a abraçar-lhe o dedo anelar. Uma memória do tempo em que ela ainda era uma boa pessoa. Quase como a personagem sonsa da telenovela. Mas nunca o foi. Foi sempre um corvo feito cisne negro que gosta de coleccionar tudo o que brilha. Mas nem tudo o que reluz é ouro.

Leave a comment