Morte que Mataste Lira

Saiu de casa descalça com um jornal debaixo do braço. Quando chegou ao jardim sentou-se muito direita contra as ripas horizontais de madeira. Pensou que era bom se chovesse, talvez a água lhe levasse o frio que não passava. Imaginou o frio a escorrer-lhe pelas pernas abaixo e a desaguar pela rua num canteiro florido.

    Cruzou as pernas e deixou a perna esquerda a oscilar em cima da perna direita, o pé esquerdo balouçava nú ao vento. Todos os que por ela passavam comentavam a sua ausência de sapatos e meias e especulavam sobre o seu inquestionável estado de loucura. Ela estava era triste, isso sim, e nenhum dos transeuntes parecia se aperceber do caso ou lhe comentava a sua falta de alma. A razão sempre foi muito sobrevalorizada, pensava Rosa, tal como a simpatia, o sexo e os telejornais.

Quando acabou de ler o jornal, ergueu as mãos ao céu, por elas adentro viu que entravam raios de luz, tinha um ferimento de bala em cada mão por onde o vento agora passava a assobiar. Não se espantou que não lhe doesse, nem não se lembrar quando e quem podia ter disparado sobre si, dobrou com dificuldade o jornal com as suas mãos novas e imperfeitas.

Eram umas mãos que já não podiam escrever. E o medo veio de uma assentada, susteve a respiração num soluço agudo e o calor chegou, e veio do peito tal como o leite sobe aos seios das que amamentam, só desse pedaço de corpo perfeito que era o seu coração poderia originar o calor e a sua verdade, o resto dos orgãos e todo o corpo com os seus caprichos só serviam para a enganar e desviar do seu caminho, principalmente o cérebro. Rosa, se pudesse desligava o curto-circuito de sinapses velozes que a atormentavam com decisões, julgamentos de valor, contas para pagar e dias do calendário por percorrer.

   Pousou o jornal, e viu a àrvore do jardim como que pela primeira vez, estava carregada dos medronhos da sua infância, o que era impossível pois esta árvore era uma amendoeira, ainda assim ergueu as suas mãos inteiras e suadas para colher um bago e ouviu ao longe dentro da sua cabeça o pai a cantar Adriano. O seu papi sussurrava-lhe: “Os olhos dos camponeses são fogos na madrugada / Mal o seu corpo tombou / A noite ficou cerrada / Tiros soaram longe/ No silêncio da Campina / Rosa do sangue brotou dos seios de Catarina / Maduro se faz o trigo em terra sem ser regado / Quem no sangue semeou há-de colher uma espada / Quem no sangue semeou há-de colher uma espada.”

    Abriu os olhos passado muito tempo, estava a arder em febre, tinha andado tanto que trazia debaixo dos pés as feridas do lixo da cidade, com a boca cheia ainda de medronhos quis abri-la para falar e não pôde, não tinha a certeza de se lembrar qual era a sua língua e como deviam soar as palavras nessa língua agora estrangeira para si. Semicerrou os olhos para se concentrar e balbuciou a pergunta. Mas o homem também não sabia o nome daquela rua, ou da outra a seguir, o homem não sabia sequer para que raio servia o dar-se nome às ruas. Era um sem-abrigo, olhou para os pés de Rosa e em vez de uma resposta, perguntou-lhe antes: ‘Porque é que pintas-te os teus sapatos?’ O que arrancou uma gargalhada a Rosa, uma gargalhada animal como nunca tinha dado, já não era mais uma menina, podia rir bem alto como uma mulher, uma mulher dona de umas mãos incapacitadas de escrever.

   Nesse dia, precedido por uma vida inteira feita para desaguar nesse dia, Rosa percebeu o poder da percepção individual em detrimento da realidade e as suas verdades absolutas e impenetráveis como o aço, um aço frio e incapaz de consolar alguém. Um louco ninguém demove, e assim, naquele dia frio em pleno jardim da Gulbenkian, Rosa escolheu enlouquecer. Com o seu corpo imperfeito num farrapo, percorria invencível a cidade numa missão sem propósito, e pensava: que pelo menos, e ao contrário das verdades feitas de aço, em cada imperfeição da sua pele a luz tinha por onde entrar e Deus podia existir.

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