A Mulher que Acreditava que o Oráculo de Delfos passava na Televisão

Como as gomas que sobraram da festa de aniversário. Comovo-me. Convenço-me que a primeira frase dita por uma mulher no ecrã de televisão é parte de uma resposta para algo importante na minha vida. Quero ouvir a resposta sem saber sequer o que quero perguntar. Finjo não saber qual é a minha dúvida existencial. Sou igual a toda a gente. Neste mesmo preciso momento, em línguas diferentes, várias alminhas se questionam em silêncio com aquela voz que só o próprio ouve dentro de si.

Estamos sempre onde é suposto estarmos?

Todos querem saber se a sua vida não é em vão, se satisfizeram os seus próprios desejos, se sonharam, se lutaram contra o mal, se caminharam com um rumo, é difícil perceber quando se está satisfeito. Já chega? Podemos parar? Estou cansada. Mudar custa tanto. É necessário um caminho para percorrer. Qual? Antes de adormecer só os pobres de espírito não falam com os seus botões. Quem responde do lado de lá? Ninguém ouve Deus, quero dizer que realmente ninguém o ouve de todo. Uns convencem-se que a sua voz interior é uma brisa que Ele nos empresta e isso estranhamente chega-lhes, acreditam na vida depois da morte e por isso nunca morrem em si mesmos. Outros ouvem mesmo a Sua voz e são dados como doidos. Já ninguém acredita em profetas.

Estamos sempre onde é suposto estarmos?

Perguntamo-nos todos em uníssono. Cada um se resolve como bem entende. Mas eu tenho o comando na mão, e a próxima mulher que abrir a boca no ecrã de televisão anuncia a nossa salvação. A minha resposta serve para todos nós? Sim, vamos acreditar que sim, que acreditar em algo não é nada mais que convencermo-nos sem reservas. Ver com um só olho. Eu tenho o comando na mão e carrego em dois números aleatoriamente. A verdade só o é se surgir do acaso. MTV. Rappers feios falam rápido demais e elas dançam com eles ou montam-nos, não percebo bem, e dizem oh oh oh. Existe uma linguagem universal nas interjeições, pela sua cara de prazer, estão a dizer que sim. Oh! Oh! Oh! De olhos revirados e ancas escancaradas. Sim.

Estamos sempre onde é suposto estarmos? Sim. Não.

Não estamos sempre onde é suposto estarmos. Não gostei da resposta deste oráculo que inventei para mim. Não era o que queria ouvir, não me convenço, tomo a resposta como falsa. O destino também pode funcionar mal. Mudo de canal. RTP. “Os Melhores Anos”, filme, 10 minutos para terminar, este canal já está a ser gravado. Uma loura bonita chora em frente a um homem muito magro. Não parece ser a primeira vez que ela chora em frente dele. Ele não parece muito aflito e ela nada surpreendida com as suas lágrimas. Está a chorar, não porque não se tenha conseguido conter, mas porque assim decidiu. As suas lágrimas são as palavras que não consegue pronunciar. São o diálogo mudo só decifrável para quem a possa amar. Ela agora só chora, não fala. A forma oval da terceira lágrima direita juntamente com as do olho esquerdo que lhe caem nos lábios inchados, dizem: se quiseres, tens o poder de me confortar. Ele passa a mão pelo cabelo, que homem bonito, é o actor do Pianista. Ele olha em volta como se houvesse algo mais importante para olhar que a loura chorosa. Ela põe-se de joelhos e debruça-se sobre uma sanita muito branca, enfia lá a cabeça e vomita dois golfos de dor. Não tem nada no estômago. Ergue a cabeça e ainda de joelhos limpa o fio prateado que lhe escorre da boca e pergunta “Do you still love me?” que traduzo automáticamente como “Ainda gostas de mim?” e não “Ainda me amas?”. Ela não pede tanto, já desistiu, só quer saber se os mínimos têm ainda condições de serem assegurados. Ele não responde. Mas ela falou e o oráculo do acaso falou, não se pode recusar o oráculo duas vezes seguidas, se não mais vale não acreditar nele. A resposta é “Ainda gostas de mim?”

Estamos sempre onde é suposto estarmos? Ainda gostas de mim?

A resposta é uma pergunta e em si exige uma outra resposta, o oráculo disse “Ainda gostas de mim?”. O mundo inteiro vaia o meu oráculo, queriam uma afirmação, não uma pergunta. Uns queriam algo que pudessem interpretar à sua vontade. Outros uma directiva. Para alguns qualquer coisa serve. Odeio estes que se contentam com o melhor que se pôde arranjar. Queria tanto desagradá-los, queria que estes meios-tintas se revoltassem contra o meu oráculo e recusassem esta resposta, como eu recusei os vários sims em forma de oh oh oh das pretas gordas de ancas escancaradas e olhos revirados de prazer.
“Ainda gostas de mim?” e o homem bonito não responde à loura que ainda chora e o questiona numa súplica elegante que não lhe embarga a voz. Corta. O plano fecha e a cena muda para uma rua de Nova Iorque, é de noite e os bares estão abertos, ainda não é muito tarde, todos se divertem e dançam, só o homem bonito caminha sozinho no passeio e a música que sai do bar da porta verde de madeira é o seu date, a sua resposta, o oráculo que não mandou vir. Tom Waits canta “It’s over, our story it’s over even before it begun”.

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